SARAIVA, António José; LOPES, Óscar. História da Literatura Portuguesa. 15. ed. Porto: Porto, 1989. p. 43-69.[1]
[43] CAPÍTULO II: A POESIA DOS CANCIONEIROS

Os mais antigos textos literários em língua portuguesa são composições em verso coligidas em Cancioneiros de fins do século XIII e do século XIV, algumas das quais remontarão a fins do século XII. Mas devemos supor muito anterior a tal época o culto da poesia [44] testemunhado por estes textos escritos. A literatura oral, com efeito, só se fixa por escrito em época tardia da sua evolução, quando as condições ambientes já divergem muito daquelas que lhe deram origem. Portanto seria errado pensar que a poesia portuguesa nasceu com os Cancioneiros; estes não passam de colecções, mais ou menos tardias, de textos que de início circulariam em cópias mais restritas.
Uma parte, pelo menos, da poesia conservada pelos Cancioneiros supõe um longo passado e uma tradição oral que nos levam a épocas muito mais remotas do que aquelas em que se compuseram os mais antigos poemas dos Cancioneiros, datados, como vimos, de fins do século XII. Adiante aludiremos às carjas (kharajat)[2], que parecem revelar a existência, no seio das populações submetidas ao domínio muçulmano, de uma poesia popular muito provavelmente precursora daquela que tais cancioneiros conservaram.
Conhecem-se três Cancioneiros ou colectâneas, aliás estreitamente aparentadas entre si, de poemas de autores diversos em língua galego-portuguesa. O mais antigo, o Cancioneiro da Ajuda, foi provavelmente compilado ou copiado na corte de Afonso X, o Sábio, em fins do século XIII. Os outros dois, o Cancioneiro da Biblioteca Nacional (antigo Colocci-Brancutti) e o Cancioneiro da Vaticana [cartáceo] são apógrafos ou cópias, realizadas em Itália no século XVI sobre originais que datam provavelmente do século XIV.
Destes três, o Cancioneiro da Ajuda é o menos completo, porque apenas abrange composições anteriores à morte de Afonso X, excluindo, por exemplo, a vasta produção de D. Dinis; e porque o seu coleccionador deixou de fora os géneros mais vulgares, isto é, as cantigas de amigo e as de escárnio ou maldizer, de que adiante falaremos. Mas tem o interesse especial de o seu manuscrito pertencer à própria época da maioria dos poetas seus colaboradores, e é um documento valioso, pela grafia, pela decoração e sobretudo pelas iluminuras, que testemunham o carácter cantado, instrumental e até coreográfico de, pelo menos, uma parte das suas poesias, integrando-as no conjunto do espectáculo jogralesco a que se destinavam.
Os cancioneiros da Vaticana e da Biblioteca Nacional, compilados depois da morte de Afonso X, abarcam um espaço de tempo [45] maior, isto é, não só os poetas contemporâneos de D. Afonso III[3] e anteriores, mas ainda os contemporâneos de D. Dinis e de seus filhos; abrangem, por outro lado, todos os géneros de composições, e não só as cantigas de amor. Destes dois, o Cancioneiro da Biblioteca Nacional é o mais completo, pois inclui quase todo o material recolhido no Cancioneiro da Vaticana e muito outro. O Cancioneiro da Ajuda contém 64 poesias não transcritas nos outros dois. Um catálogo do coleccionador quinhentista italiano, Angelo Colocci [1467-1549], a quem se deve a preservação do Cancioneiro da Biblioteca Nacional, revela-nos que qualquer dos cancioneiros se encontra hoje mutilado. É bem possível que estejamos em presença de sucessivas cópias de uma e a mesma colecção, que se iria talvez encorpando pouco a pouco; e uma das últimas fases da compilação deve ter sido certo livro das cantigas, mencionado no testamento do conde de Barcelos, D. Pedro, filho de D. Dinis (1350). O conjunto abarca 1679 poesias de 153 autores.[4]

Os autores pertencem a diversas regiões da Península, e em grande parte viveram e poetaram na corte do rei de Leão e Castela: tal é o caso do rei Afonso X, o Sábio, e dos poetas da sua corte literária, muitos deles portugueses e galegos, que ocupam uma parte importante dos Cancioneiros da Vaticana e da Biblioteca Nacional. Não devemos imaginar todos, nem talvez mesmo a maior parte dos poetas dos Cancioneiros, dentro do ambiente da corte de D. Afonso III, de D. Dinis, ou da roda de seu filho, D. Pedro, conde de Barcelos, [46] mas sobretudo dentro da corte leonesa-castelhana, com o apogeu em Afonso X, o Sábio (1252-1284). O mais antigo jogral [profissional remunerado] conhecido desta corte é referenciado em 1136, sob Afonso VII, e tem o nome de Palha. Na realidade, os Cancioneiros não constituem colecções de poesia nacional, mas sim de poesia peninsular em língua galego-portuguesa. Tudo se passa como se houvesse no Ocidente ibérico uma só literatura românica, mas polidialectal, consoante os géneros, como acontecera com a literatura grega clássica. Devemos acrescentar aos Cancioneiros profanos (ou, melhor dizendo, às três versões do Cancioneiro profano) as Cantigas de Santa Maria, coligidas na corte de Afonso X e, em parte, da autoria deste rei. São para cima de quatrocentas, com refrão e acompanhamentos musicais conhecidos, alternando séries de poesias narrativas sobre milagres da Virgem com loas que lhe são também dedicadas.
Os géneros dos Cancioneiros. — Notámos que vários géneros de poesia estão representados nos Cancioneiros da Vaticana e da Biblioteca Nacional. Este último inclui também um tratado poético truncado, do século XIV (perdeu-se todo o texto anterior ao cap. IV da 3.ª Parte), relativamente tardio, portanto, e com certa influência francesa, que pretende classificar aqueles géneros e dar as suas regras.
Distingue este tratado três géneros: as cantigas de amigo, as cantigas de amor e as cantigas de escárnio e maldizer. [1] Cf. SARAIVA, António José. História da Cultura em Portugal. Lisboa: Jornal do Foro, 1950. 3v. v. 1. 795p. O volume I abarca o período compreendido entre o último quartel do século XII e a 2.ª metade do século XIV. Cf. também: CIDADE, Hernâni. O lirismo dos cancioneiros medievais. In: Lições de Cultura e Literatura Portuguesas. 6. ed. Coimbra: Coimbra, 1975. v. 1. p. 13-27; CARVALHO, João Soares et alii. História da Literatura Portuguesa: das origens ao Cancioneiro Geral. Lisboa: Alfa, 2001. v. 1, p. 101-161. (Nota do Org.)
[2] Designação árabe dos remates de certas composições de autoria e língua hebraicas. (Org.)
[3] Cf. SARAIVA, António José. História da Cultura em Portugal. Lisboa: Jornal do Foro, 1950. v. 1, p. 69: “... o reinado de Afonso III é a época do florescimento máximo da poesia jogralesca em Portugal...”.
[4] Na 17.ª ed. tem-se “1680 poesias de cerca de 160 autores identificados” (p. 47).
Sem comentários:
Enviar um comentário