VICENTE, Gil. O velho da horta. In: Obras Completas. Porto: Lello & Irmão, 1965. p. 613-637.
Esta seguinte farsa, he o seu argumento, que um homem honrado e muito rico, já velho, tinha uma horta: e andando uma manhã por ela espairecendo, sendo o seu hortelão fora, veio uma moça de muito bom parecer buscar hortaliça, e o velho em tanta maneira se enamorou dela que, por via de uma alcoviteira, gastou toda a sua fazenda. A alcoviteira foi açoitada, e a moça casou honradamente. Entra logo o velho rezando pela horta. Foi representada ao mui sereníssimo rei D. Manuel, o primeiro desse nome. Era do Senhor de 1512.
[615]
VELHO Pater noster criador, / Qui es in coelis, poderoso, / Santificetur, Senhor, nomen tuum vencedor, / nos céu e terra piedoso. / Adveniat a tua graça./ Regnum tuum sem mais guerra; / Voluntas tua se faça / Sicut in coelo et in terra. / Panem nostrum, que comemos, / Quotidianum teu é; / Escusá-lo não podemos; / Inda que o não merecemos, / Tu da nobis hodie../ Dimitte nobis, Senhor, / Debita nossos errores, / Sicut et nos, por teu amor, / Dimittimus qualquer error / Aos nosso devedores. / Et ne nos, Deus, te pedimos,/ Inducas, por nenhum modo / In tentationem caímos; / Porque fracos nos sentimos / Formados de triste lodo. / Sed libera nossa fraqueza, / Nos a malo nesta vida; / Amen, por tua graça, / E nos livre tua alteza / Da tristeza sem medida.
Entra a MOÇA na horta e diz o
VELHO:
Senhora, benza-vos Deus,
MOÇA Deus vos mantenha, senhor.
VELHO Onde se criou tal flor?
Eu diria que nos céus.
MOÇA Mas no chão.
VELHO Pois damas se acharão
Que não são vosso sapato!
MOÇA Ai! Como isso é tão vão,
E como as lisonjas são
De barato!
VELHO Que buscais vós cá, donzela,
Senhora, meu coração?
MOÇA Vinha ao vosso hortelão,
Por cheiros para a panela.
VELHO E a isso vinde vós, meu paraíso.
Minha senhora, e não a al?
MOÇA Vistes vós! Segundo isso,
Nenhum velho não tem siso
Natural.
VELHO Ó meus olhinhos garridos,
Minha rosa, meu arminho!
MOÇA Onde é vosso ratinho?
Não tem os cheiros colhidos?
VELHO Tão depressa
[617] vinde vós, minha condessa,
meu amor, meu coração!
MOÇA Jesus! Jesus! Que coisa é essa?
E que prática tão avessa da razão!
Falai, falai doutra maneira!
Mandai-me dar a hortaliça.
VELHO Grão fogo de amor me atiça,
Oh minha alma verdadeira!
MOÇA E essa tosse? Amores de sobreposse
Serão os da vossa idade;
O tempo vos tirou a posse.
VELHO Mas amo que se moço fosse
Com a metade.
MOÇA E qual será a desastrada
Que atende vosso amor?
VELHO Oh minha alma e minha dor,
Quem vos tivesse furtada!
MOÇA Que prazer!
Quem vos isso ouvir dizer
Cuidará que estais vivo,
Ou que estai para viver!
VELHO Vivo não no quero ser,
Mas cativo!
MOÇA Vossa alma não é lembrada
Que vos despede esta vida?
VELHO Vós sois minha despedida,
Minha morte antecipada.
MOÇA Que galante!
Que rosa! Que diamante!
Que preciosa perla fina!
VELHO Oh fortuna triunfante!
Quem meteu um velho amante
Com menina!
O maior risco da vida
E mais perigoso é amar,
Que morrer é acabar
[618] E amor não tem saída,
E pois penado,
Ainda que amado,
Vive qualquer amador;
Que fará o desamado,
E sendo desesperado
De favor?
MOÇA Ora, dá-lhe lá favores!
Velhice, como te enganas!
VELHO Essas palavras ufanas
Acendem mais os amores.
MOÇA Bom homem, estais às escuras!
Não vos vedes como estais?
VELHO Vós me cegais com tristuras,
Mas vejo as desaventuras
Que me dais.
MOÇA Não vedes que sois já morto
E andais contra a natura?
VELHO Oh flor da mor formosura!
Quem vos trouxe a este meu horto?
Ai de mim!
Porque, logo que vos vi,
Cegou minha alma, e a vida;
E está tão fora de si que,
Partindo-vos daqui,
É partida.
MOÇA Já perto sois de morrer.
Donde nasce esta sandice,
Que, quanto mais na velhice,
Amais os velhos viver?
E mais querida,
Quando estais mais de partida,
É a vida que deixais?
VELHO Tanto sois mais homicida,
[619] Que, quando amo mais a vida,
Ma tirais.
Porque meu tempo d’agora
Vai vinte anos dos passados;
Que os moços namorados
A mocidade os escora.
Mas um velho, em idade de conselho,
De menina namorado...
Oh minha alma e meu espelho!
MOÇA Oh miolo de coelho mal assado!
VELHO Quanto for mais avisado
Quem de amor vive penando,
Terá menos siso amando,
porque é mais namorado.
Em conclusão:
que amor não quer razão,
nem contrato, nem cautela,
nem preito, nem condição,
mas penar de coração sem querela.
MOÇA Onde há desses namorados?
Desinçada é terra está livre deles!
Olho mau se meteu neles!
Namorados de cruzados, isso si!...
VELHO Senhora, eis-me eu aqui,
que não sei senão amar.
Oh meu rosto de alfeni!
Que em hora má eu vos vi.
MOÇA Que velho tão sem sossego!
VELHO Que garridice me viste?
MOÇA [620] Mas dizei, que me sentiste,
remelado, meio cego?
VELHO Mas de todo, por mui namorado modo,
me tendes, minha senhora,
já cego de todo em todo.
MOÇA Bem está, quando tal lodo
se namora.
VELHO Quanto mais estais avessa,
mais certo vos quero bem.
MOÇA O vosso hortelão não vem?
Quero-me ir, que estou com pressa.
VELHO Que fermosa!
Toda a minha horta é vossa.
MOÇA Não quero tanta franqueza.
VELHO Não pra me serdes piedosa,
porque, quanto mais graciosa,
sois crueza.
Cortai tudo, é permitido,
senhora, se sois servida.
Seja a horta destruída,
pois seu dono é destruído.
MOÇA Mana minha!
Julgais que sou a daninha?
Porque não posso esperar,
colherei alguma coisinha,
somente por ir asinha
e não tardar.
VELHO Colhei, rosa, dessas rosas!
Minhas flores, colhei flores!
Quisera que esses amores
foram perlas preciosas
e de rubis
o caminho por onde is,
e a horta de ouro tal,
com lavores mui sutis,
pois que Deus fazer-vos quis
angelical.
[621] Ditoso é o jardim
que está em vosso poder.
Podeis, senhora, fazer
dele o que fazeis de mim.
MOÇA Que folgura!
Que pomar e que verdura!
Que fonte tão esmerada!
VELHO N’água olhai vossa figura:
vereis minha sepultura
ser chegada.
Canta a MOÇA
“Cual es la niña
que coge las flores
sino tiene amores?
Cogia la niña la rosa florida:
El hortelanico
prendas le pedia
sino tienes amores.”
Assim cantando, colheu a MOÇA da horta o que vinha buscar e, acabado, diz:
Eis aqui o que colhi;
vede o que vos hei de dar.
VELHO Que me haveis vós de pagar,
pois que me levais a mi?
Oh coitado!
Que amor me tem entregado
e em vosso poder me fino,
como pássaro em mão dado
de um menino!
MOÇA Senhor, com vossa mercê.
VELHO Por eu não ficar sem a vossa,
queria de vós uma rosa.
MOÇA [622] Uma rosa? Para que?
VELHO Porque são
colhidas de vossa mão,
Leixar-me-eis alguma vida,
não isente de paixão
mas será consolação na partida.
MOÇA Isso é por me deter,
Ora tomai — acabar!
Tomou-lhe o VELHO a mão:
Jesus! E quereis brincar? Que galante e que prazer!
VELHO Já me leixais?
Lembre-vos que vos lembrais
E que não fico só comigo.
Oh marteiros infernais!
Não sei por que me matais,
Nem o que digo.
Vem um PARVO, criado do VELHO, e diz:
Dono, dizia minha dona
que fazeis vós cá té à noite?
VELHO Vai-te! Queres que t’açoite?
Oh! Dou ao demo a intrujona sem saber!
PARVO Diz que fosseis vós comer
e não demoreis aqui.
VELHO Não quero comer, nem beber.
PARVO Pois que haver cá de fazer?
VELHO Vai-te daí!
PARVO Dono, veio lá meu tio,
estava minha dona — então ela,
[623] Foi-se-lhe o lume pola panela,
Senão acertá-lo acario.
VELHO Oh Senhora!
Como sei que estais agora
sem saber minha saudade!
Oh senhora matadora,
meu coração vos adora
De vontade!
PARVO Raivou tanto rosmear
Oh pesar ora da vida!
Está a panela cozida,
minha dona quer jantar.
Não quereis?
VELHO Não hei de comer, que me pês,
nem quero comer bocado.
PARVO E se vós, dono, morreis?
Então depois não falareis,
senão finado.
Então na terra nego jazer,
então, finar dono, estendido.
VELHO Oh quem não fora nascido,
ou acabasse de viver!
PARVO Assim, por Deus!
Então tanta pulga em vós,
tanta bichoca nos olhos,
ali, c’os finado sós;
e comer-vos-ão a vós
os piolhos.
Comer-vos-ão as cigarras
e os sapos! Morrei! Morrei!
VELHO Deus me faz já mercê
de me soltar as amarras.
Vai saltando,
Aqui fico esperando;
traze a viola, e veremos.
PARVO Ah! Corpo de São Fernando!
Estão os outros jantando,
E cantaremos?!...
VELHO Fora eu do teu teor,
por não se sentir esta praga
[624] de fogo, que não se apaga,
nem abranda tanta dor!
Hei de morrer.
PARVO Minha dona quer comer;
Vinde, eramá, dono, que ela brada!
Olhai, eu fui-lhe dizer
dessa rosa e do tanger,
e está raivada!
VELHO Vai tu, filho Joane,
e dize que logo vou,
que não há tempo que cá estou.
PARVO Ireis vós para o Sanhoane!
Pelo céu sagrado,
que meu dono está danado!
Viu ele o demo no ramo.
Se ele fosse namorado,
logo eu vou buscar outro amo.
Vem a MULHER do VELHO e diz:
Hui! amara do meu fado;
Fernandeanes, que é isto?
VELHO Oh pesar do anticristo.
Oh velha destemperada!
Vistes ora?
MULHER E esta dama onde mora?
Hui! Infeliz dos meus dias!
Vinde jantar na má hora:
por que vos meter agora
em musiquias?
VELHO Pelo corpo de São Roque,
Comendo ò demo a gulosa!
MULHER Quem vos pôs aí essa rosa?
Má forca que vos enforque!
VELHO Não curar!
Fareis bem de vos tornar,
[625] porque estou tão sem sentido;
não cureis de me falar,
que não se pode evitar
ser perdido!
MULHER Agora com ervas novas
vos tornastes garanhão!...
VELHO Não sei que é, nem que não,
que hei de vir a fazer trovas.
MULHER Que peçonha!
Havei má ora vergonha
A cabo de sessenta anos,
que sondes vós carantonha.
VELHO Amores de quem me sonha
tantos danos!
MULHER Já vós estais em idade
de mudardes os costumes.
VELHO Pois que me pedis ciúmes,
eu vo-los farei de verdade.
MULHER Olhade a peça!
VELHO Que o demo em nada me empeça,
Senão morrer de namorado.
MULHER Está a cair da tripeça
e tem rosa na cabeça
e embeiçado!...
VELHO Deixar-me ser namorado,
porque o sou muito em extremo!
MULHER Mas vos tome inda o demo,
se vos já não tem tomado!
VELHO Dona torta, acertar por esta porta,
Velha mal-aventurada!
Sair má ora da horta!
MULHER Hui, amara! aqui sou morta,
ou espancada!
VELHO [626] Estas velhas são pecados,
Santa Maria vai com a praga!
Quanto mais homem as afaga,
tanto mais são endiabradas!
(Canta)
“Volvido nos han volvido,
volvido nos han:
por uma vecina mala
meu amor tolheu-lhe a fala
volvido nos han.”
Entra Branca Gil, ALCOVITEIRA, e diz:
Mantenha Deus vossa Mercê.
VELHO Olá! Venhais em boa hora!
Ah! Santa Maria! Senhora.
Como logo Deus provê!
ALCOVITEIRA Si, aosadas.
Eu venho por misturadas,
e muito depressa ainda.
VELHO Misturadas preparadas,
que hão de fazer bem guisadas
vossa vinda!
Justamente nestes dias,
em tempo contra a razão,
veio amor, sem intenção,
e fez de mim outro Macias
tão penado,
que de muito namorado
creio que culpareis
porque tomei tal cuidado;
e do velho destampado
zombareis.
ALCOVITEIRA [627] Mas, antes, senhor agora
na velhice anda o amor;
o de idade de amador
por acaso se namora;
e na corte
nenhum mancebo de sorte
não ama como soía.
Tudo vai em zombaria!
Nunca morrem desta morte
nenhum dia.
E folgo ora de ver
vossa mercê namorado,
que o homem bem criado
até à morte o há de ser,
por direito.
Não por modo contrafeito,