LAPA, M. Rodrigues. Lições de Literatura Portuguesa: época medieval. 10. ed. Coimbra: Coimbra, 1981. p. 138-147. |
[138] A estética da cantiga d’amor. — Sabido é como todos os que se têm ocupado da nossa antiga poesia desdenham mais ou menos das cantigas d’amor porque as consideram a parte mais convencional, menos portuguesa, do lirismo trovadoresco. A graça e a frescura da cantiga d’amigo são culpadas nisso. E é assim que D. Carolina Michaëlis, no prefácio do Glossário do Cancioneiro da Ajuda, pôde dizer, em 1922, esta coisa lamentável: que guardara inédito esse Glossário durante dezoito anos, devido à indiferença com que o texto fora acolhido!
Essa opinião, estribada principalmente num vicioso conceito estético, que não mede as distâncias, e na incompreensão das delicadezas do texto, é falsa, como quase tudo o que considera apenas a superfície. Não que as cantigas d’amor constituam uma série de obras-primas, como o não é de resto a cansó [canção] provençal, cujo modelo seguem de longe. Mas há nelas alto nível poético, como veremos. Quanto ao convencionalismo, já dissemos que [139] é isso um elemento indispensável, obrigado em toda a escola. Clássica, romântica, realista, simbolista, todas têm as suas normas, o seu sistema de formas, o seu convencionalismo, enfim, pela razão bem simples de que todas têm os seus programas; e para a execução dum programa é necessário um método.
A verdade é que nem tudo é joio na seara abundante do nosso lirismo cortês. A sua própria riqueza faz com que desejássemos mais variada e bela a produção, esquecidos das condições em que trabalhava o artista daqueles tempos. Por isso um espírito naturalmente agudo como César de Lollis, ao considerar a nossa poesia trovadoresca, atira-lhe em rosto a sua simplicidade — ideia errónea, aliás e a sua pobreza de imagens, como se a plenitude da alma, no dizer de Flaubert em Madame Bovary, tratando-se precisamente da «eterna monotonia da paixão» [p. 205], se não traduzisse às vezes pelas metáforas mais trivais.
Já D. Carolina Michaëlis, laborando no mesmo erro e no mesmo preconceito, dissera das cantigas d’amor: «artificiosas, convencionais e frias canções senhorilmente aristocráticas» (Cancioneiro da Ajuda, II, 939). A deficiência da grande filóloga está justamente na análise estética do produto literário. Possivelmente o imenso volume do seu saber histórico e filológico embotou nela, como é natural, a delicadeza da sensibilidade artística. Prova desta incapacidade estética parece estar na sua incompreensão de Fernão Lopes e nisto que diz a respeito da famosa cantiga de Pai Soares de Taveirós, Como morreu quen nunca ben: «é um primor de lirismo e de vibração poética, segundo a opinião dos entendidos» (Lições práticas de português arcaico, 99).
Quer isto dizer que chegou o tempo de considerar os nossos trovadores como artistas, e não ver apenas nas suas cantigas pasto filológico. Fazer para eles, para os [140] maiores de entre eles, aquilo que Vossler fez para Ventadorn, Marcabru e Cardenal. E um dos primeiros problemas a tratar, entrevisto lucidamente por D. Carolina Michaëlis, em 1897, é o de averiguar as razões que levaram os nossos trovadores àquela «propositada indiferença pela riqueza e variedade do pensamento, e tendência predilecta para a repetição e monotonia»; pois não é de acreditar que os nossos trovadores fossem menos dotados que os de outros países, depois do que dissemos acerca do banho lustral da cultura francesa, que a quase todos directa ou indirectamente atingiu. De resto, já em 1894 Lang acentuava que o paralelismo se não podia explicar por falta de individualidade ou de diligência artística, e que possivelmente a sua origem se reduziria a uma questão de forma. (Das Liederbuch des Königs Denis von Portugal [Cancioneiro do Rei D. Dinis de Portugal], XLVII).
O carácter repetitivo do nosso lirismo explica-se por razões de ordem psicológica e artística. Em primeiro lugar, a nossa poesia amorosa é mais do coração que a poesia provençal. Nesta, como vimos, a inteligência e a imaginação suprem muitas vezes a falta de emoção. Por isso, a poesia se alonga, num recreio dos sentidos, através de seis e sete estrofes e mais ainda. O trovador compraz-se no jogo da sua fantasia, sente-se a divisória entre o artista e o homem. A nossa cantiga d’amor dá-nos uma impressão diferente e de maior verdade psicológica.
O amor, entre nós, é uma súplica apaixonadamente triste. E não há nada que exprima tão bem esse carácter de prece do que a tautologia, a repetição necessária do apelo para alcançar um dom, que não chega jamais. Por isso o nosso lirismo é por vezes um documentário precioso de poesia pura: todo se exala num suspiro, numa queixa, numa efusão exclamativa. E uma voz que vem [141] dos longes da alma. A emoção não se pulveriza em cintilações de forma artística; sempre uno, o turbilhão emocional permanece até ao fim substancialmente o mesmo, com uma ou outra modificação levíssima de forma. Isto dá à cantiga d’amor um cunho de obsessão, de monotonia pungente, que resultaria fastidiosa se fosse desenrolada em mais de três ou quatro estrofes. Talvez por isso mesmo os trovadores limitassem a este número a repartição estrófica das cantigas.
Para exprimir esta devoradora monotonia do nosso sentimentalismo os trovadores tinham já na cantiga tradicional dois elementos que habilmente utilizaram: o paralelismo e o refrão, que se completam um ao outro. Se o paralelismo exige que, pelo menos no início, as estrofes se assemelhem, o refrão, que é muitas vezes um verdadeiro mote e a alma da cantiga, determina necessariamente um mesmo teor para os versos que o precedem. Por outras palavras: devendo todos os versos da estrofe confluir no refrão, e sendo este, naturalmente, o mesmo para cada estrofe, é inevitável a repetição da ideia, com ligeiras variantes da forma. Este facto foi pressentido com finura, em 1863, por Frederico Diez, como uma das causas da repetição. (Über die este portugiesische Kunst und Hofpoesie [Sobre a arte portuguesa e a poesia cortesã], 74).
Vejam-se os dois processos, exemplificados, nestas duas lindas cantigas de João Zorro e de Fernand’Esquio. Na primeira é evidente o decalque paralelístico nas primeiras estrofes:
Quem visse andar fremosinha,
com’eu vi, d’amor coitada
e tan muito namorada
que, chorando, assi dizia:
— Ai, amor, leixedes-m’oje de sô-lo ramo folgar
e depois treide-vos migo meu amigo demandar.
[142] Quen visse andar a fremosa,
com’eu vi, d’amor chorando
e dizendo e rogando,
por amores mui queixosa:
— Ai, amor, leixedes-m’oje de sô-lo ramo folgar
e depois treide-vos migo meu amigo demandar.
Quen lhi visse andar fazendo
queixumes d’amor d’amigo
e chorando, assi dizendo:
— Ai, amor, leixedes-m’oje de sô-lo ramo folgar
e depois treide-vos migo meu amigo demandar. [Zorro, CBN 1148 a e CV 751]
Cantigas d’amigo (Nunes), n.º 380
Nestoutra, de sentimento contido e profundo, é patente o papel nivelador do refrão nos versos que o precedem:
Senhor, por que eu tant’afã levei,
gran sazon á, por Deus, que vos non vi;
e, pero mui longe de vós vivi,
nunca aqueste verv’ antig’ achei:
quan longe d’olhos tan longe de coraçon.
A minha coita, por Deus, non á par,
que por vós levo sempr’e levarei;
e, pero mui longe de vós morei,
nunca pud’este verv’ antig’ achar:
quan longe d’olhos tan longo de coraçon.
E tan gran coita d’amor ei migo,
que o non sabe Deus, mal pecado;
pero que vivo muit’alongado
de vós, non ach’ est verv’ antigo:
quan longe d’olhos tan longe de coraçon. [Fernand’ Esquio, CBN 1296]
Cantigas d’amor (Nunes), n.º 261
É esse, se bem o definimos, o princípio estático fundamental do nosso lirismo. É essa a bitola que nos deve [143] guiar para a sua interpretação. Bellermann, em 1840, compreendeu-o perfeitamente, quando disse que, apesar de toda a sua monotonia, a nossa cantiga d’amor era «verdadeira poesia do coração, tirada directamente da natureza». E em 1843, Garrett, tratando da questão, fazia suas as palavras de Frederico-Schlegel, e explicava:
«A acusação de uniformidade parece-nos singular: é o mesmo que desdenhar da primavera pela multidão das suas flores... A impressão de uniformidade nasce de vermos estes poemas reunidos em volumosas colecções, que talvez não pensaram nem desejaram fazer seus autores. Mas, em verdade, não é só nas canções de amor; todo o poema lírico, se ele realmente foi fiel à natureza e não pretender mais do que expressar sentimentos individuais, há-de circunscrever-se a muito estreitos limites, tanto de sentir como de pensar. A prova e exemplo está nos mais altos géneros de poesia lírica de todos os povos. O sentimento há-de ocupar o primeiro lugar para poder expressar-se com poesia e força; e onde o sentimento predomina, variedade e riquezas de pensamento são de importância muito secundária. Grandes variedades em poesia lírica não se acham senão nas épocas de imitação, em que se capricha de tratar toda a casta de assuntos em toda a sorte de formas».— Romanceiro, ed. 1904, I, págs. 15-16.
Os próprios trovadores reconheceram a sua estética diferente da dos provençais. D. Dinis proclama-o claramente nas suas conhecidas cantigas (Cantigas d’amor — Nunes, n.ºs 73 e 69). Ambas elas têm um altíssimo valor documental. A primeira denuncia o artificioso da canção provençal, a sua insinceridade, comparada com aquela «mortal perdição d’amor» da cantiga portuguesa:
Proençaes soen mui ben trobar
e dizen eles que é con amor;
mais os que troban no tempo da frol
e non en outro, sei eu ben que non
an tan gran coita no seu coraçon
quel m’eu por mia senhor vejo levar. [CBN 0524 e CV 127]
[144] A segunda anuncia-nos o propósito, que realiza logo a seguir, de fazer um cantar à maneira provençal, prova insuspeita de que o rei trovador tinha a consciência de haver feito já cantares à maneira portuguesa:
Quer’ eu en maneira de proençal
fazer agora un cantar d’amor;
e querrei muit’ i loar mia senhor,
a que prez nen fremosura non fal,
nen bondade; e mais vos direi en:
tanto a fez Deus comprida de bem
que mais que todas las do mundo val. [CBN 0520 b e CV 123]
Ambas as cantigas aludem aos dois elementos, já de nós conhecidos, da canção provençal: a descrição primaveril, tema consignado na retórica médio-latina sob o nome de descriptio terrae vernantis [descrição da terra que reverdece], e a descrição das qualidades da dona, também motivo estilístico da poesia latino-medieval.
A nossa cantiga d’amor não conhece, em regra, o primeiro tópico, que teria vindo aos trovadores da liturgia cristã, o paschale gaudium [alegria pascal]; e isso é tanto mais singular quanto na liturgia hispânica se cultiva um ardente sentimento da natureza. Como explicar, pois, a sua omissão no nosso lirismo, para o qual cabe, aliás, como a nenhum outro, uma influência litúrgico-popular?
Essa aparente anomalia explica-se precisamente pelo que vimos dizendo da cantiga d’amor; ao seu carácter fundamente subjectivo, ao seu intimismo repugnava esse enfeite de estilo, essa introdução retórica, vazia de sentido já para os primeiros trovadores. O artista galego-português, arrastado pelos tumultos do coração, não tem olhos para disfrutar serenamente a natureza exterior: ninguém aprecia o encanto das flores com os olhos embaciados de lágrimas. Esse elemento descritivo, que [145] dis|traía a emoção, só podia, pois, ter cabimento num género descritivo ou mais objectivo, como a pastorela e a bailada. Foi para ai, efectivamente, que os trovadores relegaram o sentimento da natureza. A obra-prima desta poesia é a pastorela de João Airas de Santiago, que principia assim:
Pelo souto de Crecente
ũa pastor vi andar,
muit’ alongada da gente,
alçando voz a cantar,
apertando-se na saia,
quando saía la raia
do sol, nas ribas do Sar.
E as aves que voavan,
quando saía l’alvor,
todas d’amores cantavan
pelos ramos d’arredor;
mais non sei tal qu’i’stevesse
que en al cuidar podesse
senon todo en amor. [CBN 0967 e CV 554]
Cancioneiro, ed. José Luís Rodríguez, n.º XXIII
Veja-se a justificação do que vimos dizendo, nestes últimos versos. Mesmo aqui, o cenário esplendoroso da Natureza não logra empolgar o namorado, distraindo-o do seu amor.
O outro elemento, o panegírico da senhora, foi mais cultivado entre nós, nas cantigas de feição menos subjectiva. A figura do nosso idealismo limitou-o às qualidades morais: mansidão, bom falar, bom rir. Mas o testemunho de D. Dinis diz-nos que se trata de um acessório estrangeiro, não característico do nosso lirismo.
Temos, pois, em conclusão, que a forma primitiva genuinamente galego-portuguesa, da cantiga d’amor [146] deve|ria ser um lamento em forma paralelística, grito de amor infeliz, que ecoasse de estrofe em estrofe. Qualquer coisa, como esta bela e pungente cantiga de D. Dinis:
Un tal ome sei eu, ai, ben talhada,
que por vós ten a sa morte chegada;
vedes quen é e seed’ en nembrada;
eu, mia dona!
Un tal ome sei eu, que preto sente
de si morte chegada certamente;
vedes quen é e venha-vos en mente:
eu, mia dona!
Un tal ome sei eu — aquest’ oíde —
que por vós morre, vó-lo en partide;
vedes quen é e non xe vos obride:
eu, mia dona! [CBN 0514 e CV 97]
Cantigas d’amor (Nunes), n.º 45
Vêm depois as formas contaminadas de repetição, já descritas atrás, e, finalmente, a cantiga livre descarregada mais ou menos de paralelismo, dada à análise psicológica, como a sua congénere provençal. Aqui já o trovador trabalha artisticamente as suas emoções, que, por isso mesmo, perdem quase sempre um pouco da sua frescura e espontaneidade. A arte verdadeira, a que raras vezes os trovadores se elevaram neste tipo, está em revestir de forma bela a emoção, sem que ela perca da sua virtude sugestiva. Isso foi realizado plenamente numa peça lírica mal conhecida dum trovador por igual desconhecido, Nun’Eanes Cêrceo, possivelmente um clérigo, como o nome indica bem adestrado na arte de trovar. O tipo métrico era o que havia de mais complicado e caprichoso então, o descordo [Agora me quer’ eu já espedir = CBN 135], composição que, pelos contrastes da medida versificatória, era especialmente [147] indicada para traduzir o desarrazoado da paixão.