sexta-feira, 29 de abril de 2011

POR QUE PORQUÊ?


Revista Língua Portuguesa
Ano 4. Nº 50.
Por que porquê?
Quando e por que se escreve “porque” ou “por quê” e o porquê dessas variações formais
Porque
                Usado quando pode ser substituído por: “pois”, “que”, “porquanto”, “uma vez que”, “pelo fato”, “pelo motivo” e outras conjunções explicativas e causais.
            Choveu, porque o chão está molhado.
            Acho que morreu, porque parou de respirar.
            Na prática, é escrito numa só palavra se atua como substantivo ou termo de ligação (relação de causa entre um termo e outro: “Faltou ao trabalho porque caiu da cama”). Indica que um termo depende de outro.
            É equivocada a informação de que porque se divide em duas palavras sempre que há pergunta. Nos dois exemplos interrogativos abaixo, expõe-se uma causa, que exige resposta positiva ou negativa:
Porque é bem pago ele trabalha demais?
            É sutil e discutível a diferença entre a conjunção coordenativa explicativa e a subordinativa causal, ambas expressas às vezes por “porque”; costuma-se preceder por vírgula porque equivale a “para que”, conjunção final:
            Torço porque ela seja feliz no quinto casamento.
Por que
                É usado em duas palavras nas perguntas e sempre que puder ser substituído por:
a)      “a razão pela qual”, “por qual razão”, “por qual motivo”, “o motivo pelo qual”;
b)      “para que”, “pelo qual”, “pelos quais”.
Ou quando uma destas palavras – “causa”, “motivo”, “razão” – estiver implícita ou puder ser utilizada junto de por quê.
Justificativa: escreve-se o por separado do que tem função de pronome relativo ou de pronome interrogativo.
Não sei por que o candidato do povo ficou rico.
Agora sei por que (razão) ele votou no governo.
Quero saber (a razão) por que ele refugou a CPI.
Por que (motivo) os políticos apóiam qualquer governo? Patriotismo?
Porquê
            Usado numa só palavra acentuada  quando substantivo, sinônimo de motivo, causa, razão:
            Ignoro o porquê do escândalo.
            Os porquês dela são insondáveis.
Por quê
                É usado em duas palavras, com acento, nos mesmos casos anteriores, mas no fim da frase, caso em que, por convenção, que se torna palavra tônica. No caso de que seguido de vírgula, a maioria dos sábios não o acentua, talvez por considerar que vírgula não configura fim de frase. Como há dúvida, melhor acentuá-lo apenas antes de ponto final.
            Sofreu sem saber por quê.
            Não sei por quê, mas o país vai mal.

domingo, 24 de abril de 2011

Tipos de Cantigas

Tipos de Cantigas
Podemos conhecer dois grandes grupos de cantigas: as cantigas líricas e as cantigas satíricas. As cantigas líticas se subdvidem em cantigas de amor e cantigas de amigo; as cantigas satíricas, em cantigas de escárnio e cantigas de maldizer.
A diferença entre as cantigas de amor e as de amigo consiste, segundo o mesmo tratado, em que nestas se supõe que fala uma mulher, ao passo que naquelas o trovador fala em seu próprio nome. As cantigas de amigo são, portanto, quanto ao tema, cantigas de mulher, e o nome por que são conhecidas designa o seu objecto, o amigo ou namorado, geralmente referido logo no primeiro verso. Nas poesias dialogadas, o critério de classificação é, segundo a mesma arte de trovar fragmen­tária, o do ponto de vista sentimental dominante: o de elas ou o de eles.
Quanto às cantigas de escárnio e maldizer, são, é claro, de assunto satírico, e chamam-se de escárnio, se o poeta se exprime ironicamente, sugerindo uma apreciação oposta à que parece fazer, [47] ou simplesmente se abstém de nomear o satirizado; de maldizer, se o poeta apoda ou acusa directa e nomeadamente.
Esta classificação corresponde à prática da poesia de corte, tal como a parecia aos poetas palacianos do século XIV. Mas estes géneros tinham sofrido uma longa evolução, partindo de origens diferentes, antes que viessem a alinhar lado a lado na poesia da corte, como modalidades diversas de uma mesma arte. A história da cantiga de amor é diferente da história da cantiga de amigo, embora com ela venha convergir.
As cantigas de amigo. — Se atendermos sobretudo aos exemplares mais típicos, os cantares de amigo não se distinguem dos de amor unicamente por aparecerem ali “elas” e aqui “eles” a falar, mas também por outras diferenças de forma e intenção.
Cerca de uma quarentena de tais cantigas, nomeadamente designadas como paralelísticas, apresenta uma estrutura rítmica e versificatória própria, redutível a um muito simples esquema. A unidade rítmica não é a estrofe, mas o par de estrofes, ou, mais precisamente, o par de dísticos, dentro do qual ambos os dísticos querem dizer o mesmo, diferindo só, ou quase só, nas palavras da rima, que são de vogal tónica a num dos dísticos de cada par, e i ou ê no outro; o último verso de cada estrofe é o primeiro verso da estrofe correspondente no par seguinte. Cada estrofe vem seguida de refrão.
A este sistema deu-se o nome de paralelismo. Mediante ele, é possível construir uma composição de seis estrofes e dezoito versos em que apenas há cinco versos semanticamente diferentes (incluindo o refrão), como se vê pelo seguinte esquema:


 

Um exemplo permitirá compreender melhor este esquema:

Vayamos, irmana, vayamos dormir
nas ribas do lago, hu eu andar vi
a las aves meu amigo.

Vayamos, hirmana, vayamos folgar
nas ribas do lago, hu eu vi andar
a las aves meu amigo.

Nas ribas do lago, hu eu andar vi
seu arco na mão as aves ferir
a las aves meu amigo.

Nas ribas do lago, hu eu vi andar
seu arco na mão a las aves tirar
a las aves meu amigo.

Seu arco na mão as aves ferir
a las que cantavan leixá-las guarir
a las aves meu amigo.

Seu arco na mão a las aves tirar
a las que cantavan non nas quer matar
a las aves meu amigo. (CBN 1298 e CV 902) (Fernando Esquio)

[49] O refrão sugere a existência de um coro. A disposição das estrofes aos pares e a alternância das mesmas rimas ao longo de toda a composição deixam entrever que se alternavam dois cantores ou dois grupos de cantores. A repetição, à cabeça de cada nova estrofe, do verso final duma estrofe anterior é talvez o vestígio de um primitivo processo de composição improvisada, que obriga um dos improvisa­dores a repetir o último verso do outro, para o qual devia achar sequência (leixa pren, processo que ainda subsiste nas quadras ao desafio). O facto, enfim, de, em virtude deste sistema de repetições, a letra se reduzir a um número pequeno de versos mostra-nos que ela se subordinava ao canto e ao ritmo da dança, e que a invenção literária desempenhava, dentro deste conjunto, um papel relativa­mente secundário. Até hoje, foram só descobertos os acompanhamen­tos musicais para seis das sete cantigas do jogral galego Martin Codax; mas, como dissemos, as iluminuras do Cancioneiro da Ajuda repre­sentam grupos instrumentais, que incluem viola de arco, guitarra, saltério[1], sonalhas, pandeiro, etc., além de cantores e de bailarinas, dirigidos por um nobre trovador sentado com a letra em punho.
Estas características e indícios levam-nos a uma fase da história da poesia em que o poema não passa de um esboço, uma letra, para musicar, sem autonomia em relação ao canto e à dança. De resto, o próprio nome de cantigas é a este respeito muito elucidativo; e a arte de trovar apensa ao Cancioneiro da Biblioteca Nacional por várias vezes se refere a problemas de relacionação da letra com o som.
A estrutura rítmica que estudámos na sua forma mais típica admite variantes ou complicações. De facto, na sua maior parte, as cantigas de amigo oferecem uma estrutura mais complexa. Assim: em lugar de dísticos, surgem estrofes, ou coplas, de três, quatro ou mais versos; o paralelismo anafórico (ou seja, a repetição literal entre estrofes pareadas, com excepção das palavras da rima, ou pouco mais) dá lugar a um pareamento ou emparelhamento mais lasso, em que a segunda estrofe de cada par apenas repete a ideia geral da anterior; algumas composições já não respeitam regularmente o emparelhamento das coplas; e o próprio refrão deixa de aparecer no final de cada estrofe, ora intercalando-se no texto, ora (o que é mais importante) admitindo [50] pequenas variações. Com este desenvolvimento da inventividade discursiva, chega-se à cantiga de meestria; o tratado trecentista de arte poética define-a como sendo a desprovida de refrão, que é a forma elementar do paralelismo. No entanto, numerosas cantigas, chamadas de paralelismo puro, respeitam sensivelmente o esquema atrás descrito. O seu evidente destino coreográfico permitiria classificá-las como bailias ou bailadas, designação usualmente reservada a cantigas, mesmo de paralelismo imperfeito, que aludem ao acto de se dançar enquanto são cantadas.
À complicação formal do esquema paralelístico corresponde, em geral, uma variação temática. Nos cantares de amigo pode supor-se, com efeito, mais de um estrato de cultura, de ambiente social, embora sempre mais ou menos assimilado por uma elabora­ção cortês.
(...)
  O primitivismo de muitas cantigas de amigo constitui precisa­mente a sua principal atracção para muitos leitores de hoje. Algo se oferece nelas de muito diferente da mentalidade do homem actual, permitindo entrever certas formas de sensibilidade, que nem por terem sido recalcadas por aquisições posteriores deixaram de subsistir na psicologia moderna, sempre prontas a despertar. Há, por exemplo, em alguns cantares de amigo uma intimidade afectiva com a natureza que é muito diferente do gosto cenográfico da paisagem (como quadro ou reflexo dos sentimentos humanos), e que deve antes relacionar-se com o animismo típico de certa mentalidade pré-mercantil. Dir-se-ia existir uma afinidade mágica entre as pessoas e tudo o que parece [53] mover-se ou transformar-se por uma força interna: a água da fonte e do rio, as ondas do mar, as flores da Primavera ou Verão, os cervos, a luz da alva, a dos olhos. Todas estas coisas participavam ainda de tantas associações mágicas, as suas designações evocavam tantas correspondências entre o impulso amoroso e o florescer das árvores, os actos dos animais, os movimentos das coisas mais presentes, que o esquema repetitivo era como o imperceptível e subtil desenvolvimento de um tema através de modulações que sugerem os seus inesgotáveis nexos com a vida. Assim, na tão simples cantiga de  Fernando Esquio com que ficou atrás exemplificado o paralelismo típico, a imagem das raparigas que, por sugestão de uma delas, entrevemos dispostas a dormir na margem de um lago — só gradativamente se apaga perante a imagem das aves feridas pelo amigo de arco em punho; dir-se-ia que as moças vão, incautas, substituir tais peças de caça. Mas, em nova lenta gradação, a nota de crueza dissipa-se no amigo, pois o seu ferino arco poupa as aves canoras, e isso faz pressentir a ternura do seu trato amoroso perante a doce fala da moça, depois de sentirmos a sua prévia e cruenta desenvoltura de caçador. Não poderia traduzir-se melhor o enleio da donzela frente ao seu másculo e, todavia, meigo namorado. Ora imagens como estas de uma altanaria extensiva ao amor eram símbolos tradicionais, imediatamente reconhecidos e, pela sua própria obliquidade de alusão, capazes de evocar em conglomerado muito diversas vivências dos cantores-dançarinos e seu público. E observemos que, a julgar pelos poucos textos musicais subsistentes, o canto desta lírica acusa a influência da antífona ou do responsório eclesiásticos, — os quais por seu turno tiveram uma das suas origens em ritos rurais antiquíssimos.
É costume classificar as cantigas de amigo, segundo os seus temas, em bailadas ou bailias, cantigas de romaria, marinhas ou barcarolas, a que, não menos justificadamente, se poderiam acres­centar cantigas de fonte, de cenas venatórias, de amiga e mãe, de amiga e amigas (às vezes designadas como irmanas), de despedida, etc. O que, realmente, mais interessa apontar é a grande quantidade (cerca de 80) das cantigas onde há referência a romarias que se podem quase todas localizar na Galiza ou no Minho; a originalidade temática galaico-portuguesa destas e ainda de cerca de uma vintena de outras respeitantes a um ambiente marítimo (mar, ondas, ria, barcas partindo ou chegando); o carácter geralmente muito castiço das bailias, [56] por|ventura representantes do estrato histórico mais antigo porque mais difundido na Europa, senão em todo o mais velho mundo agrário (cerca de meio cento de espécimes).
Se os cantares de amigo de tipo primitivo, evocadores de uma época remota da história da poesia, podem interessar sob estes aspectos alguns leitores modernos, os de tipo mais complexo, correspondentes às estratificações burguesa e palaciana, não deixam também de ter interesse, embora diverso. Não é uma sugestão encantatória (e, nos melhores casos, extraordinariamente moderna) a que fica da sua leitura. Os poetas conseguem dar com vivacidade os diversos estados da mulher namorada, no decorrer da intriga sentimental. A saudade, o ciúme, o ressentimento, os amuos, as ansiedades, desconfianças, a reivindicação da liberdade de amar perante a intervenção materna, etc., exprimem-se de modo muito vivo; e ao lado da diversidade de situações é de notar a dos tipos psicológicos retratados; as mulheres ora são ingénuas, ora experimentadas; ora compassivas e inclinadas à piedade, ora astutas e calculistas; ora indiferentes, ora susceptíveis; ora se entregam, ora desfrutam os amigos. Os trovadores deixaram nestas poesias o resultado duma experiência ampla da vida sentimental, com a qual seria possível compor um romance precursor da Menina e Moça. É de notar, por outro lado, a simpatia com que alguns destes poetas sabem colocar-se dentro do ponto de vista da mulher e dos interesses femininos, com uma candura que ainda ressoa na poetisa galega oitocentista Rosalía de Castro [1837-1885].

A influência occitânica e as cantigas de amor. — Outro caminho temos de seguir se quisermos estudar, nas suas origens, a cantiga de amor.

Quer’ eu en maneira de proençal
fazer agora ou cantar d’amor

escreve o poeta D. Dinis, declarando o que provavelmente todos os trovadores galego-portugueses tinham presente no espírito: a ideia de que os Provençais eram os modelos a seguir.

Com efeito, foi nas cortes feudais occitânicas (e não restritamente pro­vençais, como costuma dizer-se) que floresceu a primeira grande escola da poesia [57] românica, elaborada numa língua (Langue d’oc[1]) que seria mais tarde eclipsada pelo Francês do Norte (Langue d’oïl) mas que então exprimia uma civilização mais adiantada, continuadora da já antiga dinâmica comercial mediterrânica. Ainda hoje se investiga e se discute quais fossem as tradições literárias que permitiram uma tão rápida evolução do lirismo provençal. Não há dúvida, porém, de que uma parte da cultura latina clássica deve ter sido transmitida até aos tro­vadores por intermédio da literatura eclesiástica medieval, sobretudo através de certas formas ainda em latim mas já impregnadas de espírito profano (epistolo­grafia amorosa espiritualizada entre clérigos e freiras, poesia dos goliardos, estu­dantes medievais); e é ainda mais evidente que entre o canto, a poesia, o drama litúrgico com que o clero fomentava a participação do povo na celebração do culto, e, por outro lado, o folclore rural, de origens mais antigas que o Cristia­nismo, se exerceu, durante toda a Idade Média, uma intensa influência recíproca a cujos progressos muito deveu essa nascente literatura aristocrática de corte.
Com efeito, após longa polémica, os filólogos apuraram a etimologia do verbo trovar, que afinal vem de tropare; isso reforça as ligações históricas já conhecidas entre a lírica profana medieval e os tropos, desenvolvimentos musicais e depois também versificados (estróficos e rimados) que desde os séculos VIII e IX se inseriram na liturgia. Essa inovação, mais tarde condenada no séc. XVI e que tanta importância teve no desenvolvimento da poesia, da música e até do teatro religioso e laico, é o resultado de uma tendência do clero romano para melhor atrair os fiéis populares e os trazer à participação do culto, tendência evidente desde a adopção do canto litúrgico no séc. IV até ao Incremento da salmodia responsarial (solista e coro, como na ladainha) e antifonal (dois semicoros), cujas relações com o paralelismo galaico-português já apontámos. A inovação dos tropos fora aliás precedida pela da sequência (textualmente pro sequentia, que, por abreviatura, refez e prestigiou a palavra prosa), adaptação de textos ao melisma (neste caso, Jubilus) da vogal final da palavra Aleluia, que se sustentava originariamente sobre sucessivas notas musicais.
Os Provençais foram depois os mestres e iniciadores da poesia europeia moderna, sem os quais se não compreenderiam nem Dante nem Petrarca. Os jograis occitânicos levaram a sua arte apuradíssima a todas as cortes da Europa. Diversas notícias documentam as suas estadias na Península Ibérica, e a corte de Afonso X, o Sábio, foi um dos refúgios dos trovadores dispersos pela matança dos Albigenses. A moda de trovar à maneira provençal introduziu-se, pois, nas cortes peninsulares, Incluindo a corte portuguesa, onde já se manifestava sob o reinado de Sancho I. Havia de resto entre as cortes de além-Pirenéus o novo reino do Ocidente da Península relações estreitas que facilitavam a influência  transpirenaica [além Pireneus]: o conde D. Henrique [† 1112] trouxe consigo numerosos senhores franceses; são bem conhecidas as influências do clero, nomeadamente através das reformas monacais de Cluny [abadia: 910] e Cister, que se relacionam com as origens francesas da dinastia portuguesa e se estendem ao próprio ritual e à adopção da escrita carolíngia em [58] substituição da anterior escrita visigótica; muitos portugueses frequentavam a peregrinação a Santa Maria de Rocamador, no Sul da França, e muitos trova­dores occitânicos vieram peregrinar a Santiago de Compostela; e diversas vagas de emigração, como a provocada pelas lutas civis do tempo de D. Afonso II [1185-1223], levaram senhores portugueses a França, destacando-se entre elas, pelas influências literárias bem conhecidas que trouxe, a que acompanhou na sua juventude o futuro Afonso III. Os casamentos de D. Afonso Henriques [1109-1185], D. Sancho I [1154-1211] e D. Afonso III [1210-1279] com princesas criadas em cortes cultural e até politicamente ligadas com a Provença, respectivamente Sabóia, Aragão (unida com a Catalunha) e Bolonha, devem também ter facilitado a influência occitânica. No entanto o encontro mais produtivo da joglaria galaica com o trovar occitânico deve ter-se produzido na corte castelhana.

Quando a poesia provençal, através dos seus trovadores e jograis ou dos seus imitadores peninsulares, chegou à Península, existia já aqui (é difícil duvidar) uma escola local de poesia jogralesca, provavelmente relacionada com as carjas moçárabes, aquela mesma que recolheu, adaptou e divulgou nas vilas e nas cortes a poesia folclórica a que pertencem as cantigas de amigo. O Galego, falado aquém e além do Douro, era a língua materna dos jograis tradicionais. A Galiza além-Douro escapou ao domínio muçulmano e contribuí­ram para o seu desenvolvimento cultural precoce diversos factores, entre os quais as peregrinações a Santiago de Compostela, em que participavam romeiros de toda a Europa. O mais antigo jogral galego de que há notícia pertenceu à corte de Afonso VI, avô do primeiro rei de Portugal.
É inegável nas cantigas de amor galego-portuguesas uma avassa­ladora influência provençal. A própria língua dos poetas ficou embutida de provençalismos, como sen, senso (em vez da palavra indígena seso, donde provém o actual siso); cor (em vez de coraçon); prez (em vez de preço); gréu (em vez de grave, com o sentido de pesado, difícil). Com estas e muitas outras palavras e com diversas fórmulas também de origem provençal, forjaram os poetas galego-portugueses um for­mulário de expressões que se distingue da língua dos cantares de amigo de inspiração folclórica, embora também nestes, e logo na fase mais antiga que o Cancioneiro cortês documenta, se verifiquem ves­tígios da influência estrangeira.
[59] Quanto aos temas, elaboraram os Provençais o ideal do amor cortês, muito diferente do idílio rudimentar nas margens dos rios ou à beira das fontes que os cantares de amigo nos deixam entrever. Não se trata agora de uma experiência sentimental a dois, mas de uma aspiração, sem correspondência, a um objecto inatingível, de um estado de tensão que, para permanecer, nunca pode chegar ao fim do desejo. Manter este estado de tensão parece ser o ideal do verdadeiro amador e do verdadeiro poeta, como se o movesse o amor do amor, mais do que o amor a uma mulher. E não só a esta dirigem os poetas as suas implorações, queixas ou graças, mas ao próprio Amor personificado, figura de retórica muito comum entre os trova­dores provençais e por eles transmitida aos galego-portugueses. O Amor reina, até, numa Vila ideal, com as suas cortes, os seus foros e leis.
O trovador imaginava a dama como um suserano a quem servia, numa atitude submissa de vassalo, confiando o seu destino ao “bon sem” da “senhor”. “Je soy votre homme lige”, diz em língua francesa e em termos de vassalagem feudal um poeta português[2]. Todo um código de obrigações preceituava o «serviço» do amador, que, por exemplo, devia guardar segredo sobre a identidade da dama, coibindo toda a expansão pública da paixão (o autodomínio, ou “mesura”, era a sua qualidade suprema), e que não podia ausentar-se sem sua autorização. O apaixonado deveria passar provações e fases comparáveis aos ritos de iniciação nos graus da cavalaria, antes de chegar a drudo, amante espiritual da midons, ou dama. Mesmo em algumas cantigas de amigo as damas manifestam o seu desagrado por os amadores respectivos terem infringido estas ou outras regras do “serviço”.
A este ideal de amor corresponde certo tipo idealizado de mulher, que atingiu mais tarde a máxima depuração na Beatriz do Dante ou na Laura de Petrarca: os cabelos de oiro, o sereno e luminoso olhar, a mansidão e a dignidade, do gesto, o riso subtil discreto. As cantigas de amor oferecem-nos uma cópia simplificada e fruste do retrato original pintado pelos trovadores provençais, refe­rindo-se ao “catar” (olhar) da “senhor”, ao seu “prez” ou “bon riir”, etc.
[60] É também com os Provençais que os poetas dos Cancioneiros peninsulares aprendem a objectivar paisagens. A descrição das flores de Maio, da brisa excitante da Primavera, do cantar malicioso dos rouxinóis são motivos obrigatórios dessa lírica cortês. D. Dinis, discípulo confesso dos occitânicos, mas, como vimos, também fiel às tradições nacionais, critica mesmo o convencionalismo deste quadro primaveril obrigatório do amor provençal. Teve entre os Provençais grande voga o tema do cavaleiro que, seguindo por um caminho florido, encontra e requesta de amores uma pastora. Este género, denominado entre nós pastorela, é cultivado por alguns poetas mais cultos dos Cancioneiros com uma nitidez descritiva que nos deixa muito longe do ambiente paisagístico sugestivo mas vago das cantigas de amigo. (Veja-se a célebre pastorela: “Pelo souto do Crexente” de João Airas de Santiago.) De um para outro caso difere muito a relação do homem com o meio. Na pastorela desfruta-se o espectáculo como amador das coisas belas, referidas segundo uma ordem retórica precisa, como um cenário, ao passo que nas cantigas de amigo de origem folclórica há antes, como vimos, e para usar termos conhecidos, uma participação animista entre pessoas e coisas.
Resultado da influência provençal é ainda o esboço de análise introspectiva que se encontra em alguns dos trovadores peninsulares. O sentimento dos contrastes do amor — do querer e não-querer, da timidez e da violência impulsiva do desejo, do doce-amargo da saudade — são temas muito correntes entre os Provençais, que os transmi­tiriam a Petrarca, em quem por sua vez irão aprendê-los Bernardim Ribeiro e Camões. Os poetas dos Cancioneiros galego-portugueses não os desconhecem, mas repetem-nos um pouco como fórmulas decoradas e reduzem-nos quase sempre a breves esquemas verbais exprimindo unidade na contradição, como prazer-pesar, viver-morrer, bem-mal.
A diferença entre o lirismo provençal e o dos Cancioneiros peninsulares revela-se principalmente na estrutura formal. O gênero provençal característico, a cansó (canção), não se aclimatou na Penín­sula, a não ser muito mais tarde, no século XVI, por influência de Petrarca. As cantigas de amor sem refrão nem repetições — conhe­cidas pelo nome de “cantigas de meestria” por serem aquelas que exigiam maior conhecimento da técnica provençal — constituem minoria. O refrão encontra-se, efectivamente, na maior parte das cantigas de amor, assim como o paralelismo, embora atenuado e por vezes mascarado. O poeta galego-português só por excepção desenrola um pensamento com princípio, meio e fim ao longo de uma série de estrofes; prefere o processo de modular em cada estrofe, variando palavras e rimas, a mesma ideia.
Esta construção dá à maior parte das cantigas de amor um tom de lamento repetido e insistente, quando muito um desenvol­vimento, por assim dizer, em espiral, espécie de compromisso entre a retórica de progressão rectilínea dos provençais e a estética repeti­tiva, circular, das bailias. Há quem considere isto como o produto de uma sensibilidade étnica, mas há que ter em conta que faltava aos poetas peninsulares ocidentais (portugueses, galegos, leoneses, castelhanos) uma experiência literária que lhes permitisse .acompanhar o largo fôlego, a complexa estrutura e a eloquência discursiva da cansó provençal. Nestas condições se vazaram os temas provençais, [62] aliás imperfeitamente assimilados, dentro dos moldes praticados pela escola jogralesca local, isto é, dentro do paralelismo e do refrão; a isso ajustaram os seus dons, às vezes notáveis.
A influência provençal, portanto, ainda que flagrante, é assi­milada por uma poesia peninsular, de origem folclórica, difundida por jograis galegos, cujas formas originárias estão representadas nas cantigas de amigo de estrutura paralelística mais simples.
O relativo primitivismo dos trovadores galego-portugueses que assimilaram a influência provençal, adaptando-a às formas poéticas já existentes no seu pais, não deve confundir-se com a expressão de uma pura espontaneidade. Pelo contrário, há exemplos de como o paralelismo e o refrão constituem para muitos deles um quadro formal artificiosamente aproveitado. É fácil documentar em nume­rosas composições dos Cancioneiros, sobretudo nas cantigas de amor, um exercício formalista, que dispõe de uma arte ainda primitiva. Numerosos poetas se dedicam a inventar sentidos novos com jogos de ritmos e de palavras.
Contam-se entre estes processos formalistas os do “dobres e do “mordobre” (noutra leitura “mozdobre”). Consistia o primeiro em repetir uma mesma palavra por cada estrofe, sempre nos mesmos lugares de estrofe e verso (por exemplo, no final do primeiro e do último verso), jogando por vezes com os seus vários sentidos, o que transformará em trocadilho um simples processo repetitivo. Assim, um poeta [Pero da Ponte] comemora a tomada de Valença (Valência), repetindo este vocábulo, ora para significar a cidade conquistada, seu valor ou importância, ora para designar a valentia do rei conquistador [“O que Valença conquereu”]. O mordobre só difere do dobre por se não fazer com uma forma única, mas com flexões da mesma palavra ou com formas etimologicamente afins.
Tal é o caso também do processo conhecido pelo nome de “atá-fiinda” (noutra leitura atehuda), aliás pouco vulgar entre os provençais: cada estrofe termina no meio de uma frase, de modo que o leitor tenha de procurar imediatamente o seu complemento na estrofe seguinte, seguindo sem parar até a um remate de dois ou três versos, onde finalmente o período se completa. Trata-se, afinal, de uma utilização do encavalgamento ou “enjambement” pelo qual [63] as palavras indispensáveis ao sentido de um verso são atiradas para o verso seguinte, com a particularidade de que os versos assim ligados constituem, na “atá-fiinda”, o termo e o começo de duas estrofes consecutivas. Ao contrário do que poderia parecer à primeira vista, geralmente não conduz a uma sequência ininterrupta do dis­curso, porque cada estrofe exprime afinal o mesmo pensamento, segundo o processo repetitivo tradicional. É um mero jogo rítmico (não coincidência da pausa frásica com a pausa estrófica); espertina a atenção do leitor, e cria nele um estado de expectativa que pode ser utilizado para pôr em relevo a conclusão ou “fiinda”. O uso regular, estrofe a estrofe, do verso branco (“palavra perduda”) é também consi­derado, na Arte de Trovar do Cancioneiro da Biblioteca Nacional, como um artifício de mestria, por tornar ritmicamente menos nítida a percepção do verso, apoiando-a apenas no isossilabismo (número certo de silabas). Todos estes processos, quebrando a coincidência das pausas sintácticas com as pausas versificatórias, criando uma certa margem de imprevisibilidade e de indeterminação rítmica (e isto numa altura em que o predomínio da transmissão oral[1] sobre a escrita ainda mais acentuava a importância do ritmo do verso), constituem, sem dúvida, manifestações de uma mestria versificadora superior àquela que era exigida pelos esquemas paralelísticos ou repetitivos mais fixos.
A análise destes e de outros processos formais permite-nos acompanhar o trabalho laborioso de poetas, em muitos casos pro­fissionais, como Pêro da Ponte, que ensaiam formas de expressão, adaptando esquemas antigos e imitando modelos estranhos. O con­junto dos cantares de amor ressente-se destes tenteios, deste esforço dos poetas para ascenderem a uma expressão culta a partir de formas primitivas. Daqui resulta uma forma por vezes inacabada, uma série de tentativas malogradas, uma oscilação entre o primitivismo e o preciosismo ingénuo que caracterizam no seu conjunto este género, onde é difícil seleccionar uma obra-prima. Merecem todavia salien­tar-se algumas realizações de D. Dinis, Pêro da Ponte, João Garcia de Guilhade, Airas Nunes e alguns mais.
Entre os géneros occitânicos de que é possível encontrar corres­pondência nos cancioneiros galaico-portugueses contam-se a pastorela, [64] já mencionada; a alba, despedida dos amados ao romper do dia (esboço da célebre cena shakespeariana em Romeu e Julieta), cujo melhor espécime entre nós se pode considerar a cantiga atrás referida de Nuno Fernández Torneol; a canção de tear (“Sedia la fremosa su sirgo torcendo” de Estevão Coelho) revela a influência da chanson de toile dos trouvères [trovadores] da França do Norte; o pranto à morte de um senhor venerado; a despedida (congé) e o descordo (descort), que pretende traduzir um abalo emocional por várias mudanças de estrutura estró­fica, por uma sintaxe acidentada de hipérbatos ou por pretensas inconsequências lógicas. De um modo geral, as correspondências galaico-portuguesas a estes géneros caracterizam-se pela simplificação já apontada, pelo recato da notação sensual, pela imaturidade das suas tentativas doutrinais e por uma tendência para a expressão paralelística da subjectividade feminina, o que permite classificá-las, por vezes (como com maior ou menor razão se tem feito a muitas), entre as cantigas de amigo.

A sátira — As cantigas de escárnio e maldizer ocupam grande espaço nos Cancioneiros da Vaticana e da Biblioteca Nacional de Lisboa. Tem por assunto, na sua grande maioria, certos aspectos particulares da vida de corte e especialmente da boémia jogralesca.
A sua leitura revela-nos, além do resto, uma sociedade boémia em que entravam jograis de corte, cantadeiras, soldadeiras (bailarinas), fidalgos. O jogral e a sua companheira tinham um estatuto social de marginais. Eram “artistas” da boémia, e por isso mesmo permi­tiam-se-lhes liberdades de costumes e de fala vedadas no mundo regularmente constituído. Isso explica que os vícios mais íntimos, as aventuras mais pícaras destes heróis truanescos surjam assoalhados escandalosamente: as andanças e percalços de uma bailarina versátil, os sapatos dourados de um fidalgo pretensioso, a voz de um cantor enrouquecida pelos abusos do álcool, etc., não faltando mesmo uma abadessa elogiada ou satirizada por um segrel[2] quanto à sua experiência sexual. Mas estes marginais fraternizavam com fidalgos, clérigos e até reis no mundo da boémia; vemo-los misturados nos mesmos [65] mexericos, usando a mesma linguagem, com grande abundância de termos hoje considerados obscenos.
É raro encontrarem-se nas cantigas de escárnio temas de alcance geral. Mas, nos muitos casos anedóticos a que se referem, distin­guem-se certos motivos frequentes, condicionados pelo ambiente. Toda uma massa de composições espelha os problemas típicos da vida jogralesca. Numerosas cantigas, por exemplo, ocupam-se da sovinice dos ricos-homens, da miséria envergonhada dos infanções: à escassez das classes nobres são, naturalmente, muito sensíveis os jograis que, em paga do seu trabalho artístico, pedem roupas ou alimento. Outro grupo de cantigas mostra-nos as disputas entre os jograis e os trova­dores fidalgos: aqueles porque pretendiam ultrapassar a sua condição, que era, pelo menos convencionalmente, de simples executantes musi­cais, metendo-se também a compor versos; estes porque defendiam a jerarquia, que limitava o papel do jogral ao acompanhamento instrumental e ao canto da composição já criada pelo trovador. Patenteia-se nestes conflitos que o jogral era um vilão, e o trovador, na maior parte dos casos, um indivíduo da classe nobre. Não admira por isso que também a ideologia da nobreza se exprima em nume­rosas cantigas satíricas. O plebeu, nobilitado ou não, aparece muitas vezes coberto de ridículo, nos seus trajos e na sua figura: esboça-se aqui o tipo do “burguês”, satirizado já pela comédia clássica, e mais tarde pela commedia dell’arte, por Molière (Le Bourgeois Gentilhomme) [O burguês fidalgo]  e por D. Francisco Manuel de Melo. Mas não é menos frequente a troça à pelintrice da pequena nobreza, de um modo que preludia a farsa vicentina sobre os escudeiros esfomeados.
Como repertório pícaro ou pitoresco de costumes, testemunho voluntário ou involuntário de uma ideologia, a sátira trovadoresca completa os livros das Linhagens[3]; em muitos casos o gosto, por assim dizer, naturalista, da anedota vivida ou testemunhada prevalece mesmo sobre a intenção trocista. E assim perpassam, já só por si interessantes, o velho que desesperadamente se pinta e enroupa muito caro; a rapariga que a mãe antes ensina a saracotear-se do que a coser e fiar; um cavalo faminto abandonado [Joan Garcia: “Un cavalo non comeu”], como mais tarde o de Tolentino, mas que se refaz com erva fresca depois das chuvas; gabarolices de [66] falsos romeiros à Terra Santa; fracassos imprevistos por um astrólogo; um juiz que se deixa peitar; agoiros e superstições; incidentes variados de viagem e hospitalidade; uma ex-soldadeira queixando-se, no confessionário, não dos antigos pecados, mas da velhice; raparigas casadas (o poeta considera que vendidas) à força, ou impunemente raptadas; abadessas cheias de condescendências; etc. Estas pequenas iluminuras satíricas de costumes são apresentadas com uma cordialíssima satisfação pelos simples factos, ou com uma desfaçatez, um amoralismo, uma real ou imaginária auto-ridicularização pelos seus protagonistas que contrastam surpreendentemente com a pudicícia moralizante de quase toda a posterior literatura portuguesa.
Contam-se pelos dedos as composições em que os poetas cul­tivaram a sátira como género de interesse geral, versando temas morais ou sociais, à imitação do “sirventês” moral occitânico: tal é o caso de dois clérigos — ambos muito conhecedores dos modelos provençais — Martim Moxa e Airas Nunes. O primeiro justifica uma visão pessimista apocalíptica do mundo com os desacatos da honra e autoridade, a venalidade dos validos régios, o empobrecimento geral, a omnipotência da lisonja e o desprezo pela clerezia, ou cultura, chegando a abonar a imoralidade própria com a alheia[4]. O segundo apresenta-se procurando de porta em porta e sem resultado uma Verdade que não existe em parte alguma, nem nos conventos e mos­teiros, nem na cidade santa de Santiago de Compostela. Pêro da Ponte dá-nos também alguns dos melhores testemunhos do tempo, quer através dos seus prantos, de que a sátira não está ausente, quer pela crítica às arbitrariedades exercidas sobre certos concelhos.
Como arma política, instrumento de acção sobre a opinião pública, também a sátira foi entre nós pouco brandida. Sobressaem, no entanto, as canções compostas por Afonso X, o Sábio, acerca dos fidalgos que desertaram numa campanha contra Granada; e as com­posições em que se profligam os alcaides dos castelos que atraiçoaram Sancho II[5] na guerra civil de 1245, inspiradas talvez na corte de Afonso X, amigo e aliado daquele rei.
Quer as composições anedóticas, quer as de interesse geral, usam de processos métricos e estilísticos que estão longe de ser espontâneos. [67] O teorizador anónimo da arte de trovar trecentista que até nós chegou truncada parece reconhecer a influência, na cantiga de escárnio, de uma retórica de tradição eclesiástica, portanto indirectamente clássica, no uso satírico da aequivocatio [equívoco], da alusão oblíqua, talvez mais apreciada como processo artístico do que usada como eufemismo. Abunda, não só o trocadilho malicioso, que serve mesmo de ossatura a várias composições mais escabrosas, mas uma variadíssima técnica servindo toda a gama de humor a que a matéria de facto pode ser sujeita. Nem sequer falta aquela subtil malícia a que as retóricas clássicas chamam a Litotes e em inglês se designa expressivamente como understatement [subentendido]: Gil Peres Conde atribui à sua má sorte, ou má hora, o esquecimento régio de tantos bons serviços como os que enumera. E estes poetas, tão adestrados pelas cantigas de amigo no mime­tismo finamente irónico dos sentimentos alheios, assumem frequente­mente a voz das personagens focadas, ou de outras cujo ângulo visual melhor trai o objecto de troça: assim, Diego Pezelho[6] ascende ao sar­casmo imaginando um prisioneiro, vítima da fidelidade a D. Sancho II, disposto a comprar a liberdade em troca de um juramento... de traição. Até a blasfémia serve de veículo ao humor, como, depois, em Gil Vicente, e vá de acusar desabridamente a Providência de cumplici­dade na clausura violenta da amada, se não mesmo de pecado mortal porque negou protecção aos seus mais fiéis vassalos. Agora a utilização literária do sonho: Martim Moxa caracteriza a cedência dos senhores às insídias dos lisonjeiros com um sonho em que teria visto um pequeno pássaro dominar, pela crista, outra ave mais encorpada[7]. E o absurdo: Martim Eanes Marinho faz o rol das dádivas de um infanção pobretanas mas sempre a prometer mundos e fundos: umas calças de névoa de antanho, um potro cor de mentira, uma loriga invisível, sem peso e cravejada de intrujice, um pau de nevoeiro e outras muitas coisas de chufas guarnecidas[8]. Outro satírico pergunta ao rei se lhe pagará depois de morto o que lhe deve, falando a pro­pósito de “os vossos meus dinheiros”[9]. Alegorias chistosas: os projectos de uma aventura de amor são divertidamente descritos pelo prota­gonista e por um seu amigo em termos de materiais de construção civil, pois se trata de “madeira nova”[10], em calão de hoje “material novo”; [68] outro satírico imagina deserto o leilão a que se expõe a pessoa de um mau rico-homem. Em tons mais amargos, há aquele poeta que, numa tenção de escárnio, se recusa, perante insistências do antagonista mordaz, a reconhecer de todo em todo a morte da bem-amada; além de tantos outros que assoalham, rindo, os seus desaires eróticos mais íntimos, hoje inconfessáveis. E há o admirável descordo em que Afonso X, saturado de cuidados sentimentais, económicos e militares, desabafa a sua ânsia de fugir aos lacraus [escorpiões] da Meseta, abalar sozinho, feito mercador ou marinheiro, pelo mar em fora até qualquer outra gente[11].
          Conforme se vê, o escárnio galaico-português dos anos de mil e duzentos ou mil e trezentos contém em ovo muitas tonalidades que mais tarde se reconheceriam afinal como líricas. Não admira por isso que Rodrigues Lapa, ao presentear-nos finalmente com a edição crítica de todas as 428 composições classificáveis neste terceiro género da escola trovadoresca, tenha incluído espécimes que também se poderiam considerar como de amor, e até de amigo. O escárnio era o refúgio de uma variada gama de subjectividade que ainda se não descobria a si própria

LAPA, M. Rodrigues. Lições de Literatura Portuguesa: época medieval. 10. ed. Coimbra: Coimbra, 1981. p. 138-147.

[138] A estética da cantiga d’amor. — Sabido é como todos os que se têm ocupado da nossa antiga poesia desdenham mais ou menos das cantigas d’amor porque as conside­ram a parte mais convencional, menos portuguesa, do lirismo trovadoresco. A graça e a frescura da cantiga d’amigo são culpadas nisso. E é assim que D. Carolina Michaëlis, no prefácio do Glossário do Cancioneiro da Ajuda, pôde dizer, em 1922, esta coisa lamentável: que guardara inédito esse Glossário durante dezoito anos, devido à indiferença com que o texto fora acolhido!
Essa opinião, estribada principalmente num vicioso conceito estético, que não mede as distâncias, e na incom­preensão das delicadezas do texto, é falsa, como quase tudo o que considera apenas a superfície. Não que as cantigas d’amor constituam uma série de obras-primas, como o não é de resto a cansó [canção] provençal, cujo modelo seguem de longe. Mas há nelas alto nível poético, como veremos. Quanto ao convencionalismo, já dissemos que [139] é isso um elemento indispensável, obrigado em toda a escola. Clássica, romântica, realista, simbolista, todas têm as suas normas, o seu sistema de formas, o seu convencionalismo, enfim, pela razão bem simples de que todas têm os seus programas; e para a execução dum programa é necessário um método.
A verdade é que nem tudo é joio na seara abundante do nosso lirismo cortês. A sua própria riqueza faz com que desejássemos mais variada e bela a produção, esque­cidos das condições em que trabalhava o artista daqueles tempos. Por isso um espírito naturalmente agudo como César de Lollis, ao considerar a nossa poesia trovadoresca, atira-lhe em rosto a sua simplicidade — ideia errónea, aliás e a sua pobreza de imagens, como se a plenitude da alma, no dizer de Flaubert em Madame Bovary, tra­tando-se precisamente da «eterna monotonia da paixão» [p. 205], se não traduzisse às vezes pelas metáforas mais trivais.
Já D. Carolina Michaëlis, laborando no mesmo erro e no mesmo preconceito, dissera das cantigas d’amor: «artificiosas, convencionais e frias canções senhorilmente aristocráticas» (Cancioneiro da Ajuda, II, 939). A defi­ciência da grande filóloga está justamente na análise estética do produto literário. Possivelmente o imenso volume do seu saber histórico e filológico embotou nela, como é natural, a delicadeza da sensibilidade artística. Prova desta incapacidade estética parece estar na sua incompreensão de Fernão Lopes e nisto que diz a res­peito da famosa cantiga de Pai Soares de Taveirós, Como morreu quen nunca ben: «é um primor de lirismo e de vibração poética, segundo a opinião dos entendidos» (Lições práticas de português arcaico, 99).
Quer isto dizer que chegou o tempo de considerar os nossos trovadores como artistas, e não ver apenas nas suas cantigas pasto filológico. Fazer para eles, para os [140] maiores de entre eles, aquilo que Vossler fez para Venta­dorn, Marcabru e Cardenal. E um dos primeiros proble­mas a tratar, entrevisto lucidamente por D. Carolina Michaëlis, em 1897, é o de averiguar as razões que leva­ram os nossos trovadores àquela «propositada indife­rença pela riqueza e variedade do pensamento, e tendên­cia predilecta para a repetição e monotonia»; pois não é de acreditar que os nossos trovadores fossem menos dotados que os de outros países, depois do que dissemos acerca do banho lustral da cultura francesa, que a quase todos directa ou indirectamente atingiu. De resto, já em 1894 Lang acentuava que o paralelismo se não podia explicar por falta de individualidade ou de diligência artística, e que possivelmente a sua origem se reduziria a uma questão de forma. (Das Liederbuch des Königs Denis von Portugal [Cancioneiro do Rei D. Dinis de Portugal], XLVII).
O carácter repetitivo do nosso lirismo explica-se por razões de ordem psicológica e artística. Em primeiro lugar, a nossa poesia amorosa é mais do coração que a poesia provençal. Nesta, como vimos, a inteligência e a imaginação suprem muitas vezes a falta de emoção. Por isso, a poesia se alonga, num recreio dos sentidos, através de seis e sete estrofes e mais ainda. O trova­dor compraz-se no jogo da sua fantasia, sente-se a divi­sória entre o artista e o homem. A nossa cantiga d’amor dá-nos uma impressão diferente e de maior verdade psi­cológica.
O amor, entre nós, é uma súplica apaixonadamente triste. E não há nada que exprima tão bem esse carácter de prece do que a tautologia, a repetição necessária do apelo para alcançar um dom, que não chega jamais. Por isso o nosso lirismo é por vezes um documentário pre­cioso de poesia pura: todo se exala num suspiro, numa queixa, numa efusão exclamativa. E uma voz que vem [141] dos longes da alma. A emoção não se pulveriza em cinti­lações de forma artística; sempre uno, o turbilhão emo­cional permanece até ao fim substancialmente o mesmo, com uma ou outra modificação levíssima de forma. Isto dá à cantiga d’amor um cunho de obsessão, de monoto­nia pungente, que resultaria fastidiosa se fosse desenro­lada em mais de três ou quatro estrofes. Talvez por isso mesmo os trovadores limitassem a este número a repar­tição estrófica das cantigas.
Para exprimir esta devoradora monotonia do nosso sentimentalismo os trovadores tinham já na cantiga tradicional dois elementos que habilmente utilizaram: o paralelismo e o refrão, que se completam um ao outro. Se o paralelismo exige que, pelo menos no início, as estro­fes se assemelhem, o refrão, que é muitas vezes um verda­deiro mote e a alma da cantiga, determina necessaria­mente um mesmo teor para os versos que o precedem. Por outras palavras: devendo todos os versos da estrofe confluir no refrão, e sendo este, naturalmente, o mesmo para cada estrofe, é inevitável a repetição da ideia, com ligeiras variantes da forma. Este facto foi pressentido com finura, em 1863, por Frederico Diez, como uma das causas da repetição. (Über die este portugiesische Kunst und Hofpoesie [Sobre a arte portuguesa e a poesia cortesã], 74).
Vejam-se os dois processos, exemplificados, nestas duas lindas cantigas de João Zorro e de Fernand’Esquio. Na primeira é evidente o decalque paralelístico nas primeiras estrofes:

Quem visse andar fremosinha,
com’eu vi, d’amor coitada
e tan muito namorada
que, chorando, assi dizia:
— Ai, amor, leixedes-m’oje de sô-lo ramo folgar
e depois treide-vos migo meu amigo demandar.

[142] Quen visse andar a fremosa,
com’eu vi, d’amor chorando
e dizendo e rogando,
por amores mui queixosa:
— Ai, amor, leixedes-m’oje de sô-lo ramo folgar
e depois treide-vos migo meu amigo demandar.

Quen lhi visse andar fazendo
queixumes d’amor d’amigo
e chorando, assi dizendo:
— Ai, amor, leixedes-m’oje de sô-lo ramo folgar
e depois treide-vos migo meu amigo demandar. [Zorro, CBN 1148 a e CV 751]

Cantigas d’amigo (Nunes), n.º 380

Nestoutra, de sentimento contido e profundo, é patente o papel nivelador do refrão nos versos que o precedem:

Senhor, por que eu tant’afã levei,
gran sazon á, por Deus, que vos non vi;
e, pero mui longe de vós vivi,
nunca aqueste verv’ antig’ achei:
quan longe d’olhos tan longe de coraçon.

A minha coita, por Deus, non á par,
que por vós levo sempr’e levarei;
e, pero mui longe de vós morei,
nunca pud’este verv’ antig’ achar:
quan longe d’olhos tan longo de coraçon.

E tan gran coita d’amor ei migo,
que o non sabe Deus, mal pecado;
pero que vivo muit’alongado
de vós, non ach’ est verv’ antigo:
quan longe d’olhos tan longe de coraçon. [Fernand’ Esquio, CBN 1296]
Cantigas d’amor (Nunes), n.º 261

É esse, se bem o definimos, o princípio estático fun­damental do nosso lirismo. É essa a bitola que nos deve [143] guiar para a sua interpretação. Bellermann, em 1840, compreendeu-o perfeitamente, quando disse que, apesar de toda a sua monotonia, a nossa cantiga d’amor era «ver­dadeira poesia do coração, tirada directamente da natu­reza». E em 1843, Garrett, tratando da questão, fazia suas as palavras de Frederico-Schlegel, e explicava:

«A acusação de uniformidade parece-nos singular: é o mesmo que desdenhar da primavera pela multidão das suas flores... A impressão de uniformidade nasce de vermos estes poemas reunidos em volumosas colecções, que talvez não pensaram nem dese­jaram fazer seus autores. Mas, em verdade, não é só nas canções de amor; todo o poema lírico, se ele realmente foi fiel à natureza e não pretender mais do que expressar sentimentos individuais, há-de circunscrever-se a muito estreitos limites, tanto de sentir como de pensar. A prova e exemplo está nos mais altos géneros de poesia lírica de todos os povos. O sentimento há-de ocupar o primeiro lugar para poder expressar-se com poesia e força; e onde o sentimento predomina, variedade e riquezas de pensa­mento são de importância muito secundária. Grandes variedades em poesia lírica não se acham senão nas épocas de imitação, em que se capricha de tratar toda a casta de assuntos em toda a sorte de formas».— Romanceiro, ed. 1904, I, págs. 15-16.

Os próprios trovadores reconheceram a sua estética diferente da dos provençais. D. Dinis proclama-o clara­mente nas suas conhecidas cantigas (Cantigas d’amor Nunes, n.ºs 73 e 69). Ambas elas têm um altíssimo valor documental. A primeira denuncia o artificioso da canção provençal, a sua insinceridade, comparada com aquela «mortal perdição d’amor» da cantiga portuguesa:

Proençaes soen mui ben trobar
e dizen eles que é con amor;
mais os que troban no tempo da frol
e non en outro, sei eu ben que non
an tan gran coita no seu coraçon
quel m’eu por mia senhor vejo levar. [CBN 0524 e CV 127]

[144] A segunda anuncia-nos o propósito, que realiza logo a seguir, de fazer um cantar à maneira provençal, prova insuspeita de que o rei trovador tinha a consciência de haver feito já cantares à maneira portuguesa:

Quer’ eu en maneira de proençal
fazer agora un cantar d’amor;
e querrei muit’ i loar mia senhor,
a que prez nen fremosura non fal,
nen bondade; e mais vos direi en:
tanto a fez Deus comprida de bem
que mais que todas las do mundo val. [CBN 0520 b e CV 123]

Ambas as cantigas aludem aos dois elementos, já de nós conhecidos, da canção provençal: a descrição prima­veril, tema consignado na retórica médio-latina sob o nome de descriptio terrae vernantis [descrição da terra que reverdece], e a descrição das qualidades da dona, também motivo estilístico da poesia latino-medieval.
A nossa cantiga d’amor não conhece, em regra, o primeiro tópico, que teria vindo aos trovadores da liturgia cristã, o paschale gaudium [alegria pascal]; e isso é tanto mais singular quanto na liturgia hispânica se cultiva um ardente sen­timento da natureza. Como explicar, pois, a sua omissão no nosso lirismo, para o qual cabe, aliás, como a nenhum outro, uma influência litúrgico-popular?
Essa aparente anomalia explica-se precisamente pelo que vimos dizendo da cantiga d’amor; ao seu carácter fundamente subjectivo, ao seu intimismo repugnava esse enfeite de estilo, essa introdução retórica, vazia de sentido já para os primeiros trovadores. O artista galego­-português, arrastado pelos tumultos do coração, não tem olhos para disfrutar serenamente a natureza exterior: ninguém aprecia o encanto das flores com os olhos embaciados de lágrimas. Esse elemento descritivo, que [145] dis|traía a emoção, só podia, pois, ter cabimento num género descritivo ou mais objectivo, como a pastorela e a bai­lada. Foi para ai, efectivamente, que os trovadores rele­garam o sentimento da natureza. A obra-prima desta poesia é a pastorela de João Airas de Santiago, que prin­cipia assim:

Pelo souto de Crecente
ũa pastor vi andar,
muit’ alongada da gente,
alçando voz a cantar,
apertando-se na saia,
quando saía la raia
do sol, nas ribas do Sar.

E as aves que voavan,
quando saía l’alvor,
todas d’amores cantavan
pelos ramos d’arredor;
mais non sei tal qu’i’stevesse
que en al cuidar podesse
senon todo en amor. [CBN 0967 e CV 554]
Cancioneiro, ed. José Luís Rodríguez, n.º XXIII

Veja-se a justificação do que vimos dizendo, nestes últimos versos. Mesmo aqui, o cenário esplendoroso da Natureza não logra empolgar o namorado, distraindo-o do seu amor.
O outro elemento, o panegírico da senhora, foi mais cultivado entre nós, nas cantigas de feição menos subjec­tiva. A figura do nosso idealismo limitou-o às qualidades morais: mansidão, bom falar, bom rir. Mas o testemunho de D. Dinis diz-nos que se trata de um acessório estran­geiro, não característico do nosso lirismo.
Temos, pois, em conclusão, que a forma primitiva genuinamente galego-portuguesa, da cantiga d’amor [146] deve|ria ser um lamento em forma paralelística, grito de amor infeliz, que ecoasse de estrofe em estrofe. Qualquer coisa, como esta bela e pungente cantiga de D. Dinis:

Un tal ome sei eu, ai, ben talhada,
que por vós ten a sa morte chegada;
vedes quen é e seed’ en nembrada;
eu, mia dona!

Un tal ome sei eu, que preto sente
de si morte chegada certamente;
vedes quen é e venha-vos en mente:
eu, mia dona!

Un tal ome sei eu — aquest’ oíde —
que por vós morre, vó-lo en partide;
vedes quen é e non xe vos obride:
eu, mia dona! [CBN 0514 e CV 97]
Cantigas d’amor (Nunes), n.º 45

Vêm depois as formas contaminadas de repetição, já descritas atrás, e, finalmente, a cantiga livre descarregada mais ou menos de paralelismo, dada à análise psicológica, como a sua congénere provençal. Aqui já o trovador trabalha artisticamente as suas emoções, que, por isso mesmo, perdem quase sempre um pouco da sua frescura e espontaneidade. A arte verdadeira, a que raras vezes os trovadores se elevaram neste tipo, está em reves­tir de forma bela a emoção, sem que ela perca da sua virtude sugestiva. Isso foi realizado plenamente numa peça lírica mal conhecida dum trovador por igual desco­nhecido, Nun’Eanes Cêrceo, possivelmente um clérigo, como o nome indica bem adestrado na arte de trovar. O tipo métrico era o que havia de mais complicado e caprichoso então, o descordo [Agora me quer’ eu já espedir = CBN 135], composição que, pelos contrastes da medida versificatória, era especialmente [147] indicada para traduzir o desarrazoado da paixão.